Rádio Sol | Estória para não embalar
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© Rocco Rorandelli |
Escrito para o Photsoc, Festival Internacional da Fotografia social de Sarcelles, 2011, inspirado pela fotografia de Rocco Rorandelli.
Publicado no livro Pour une poignées de rêves (2013)
RÁDIO SOL
Por Jo Ann von Haff
“São oito horas da manhã, bom dia com a Rádio Sol!
Já a seguir, Aminata Traoré com as notícias.”
“Bom dia. A onda de frio coninua pela Europa.
Milhares de passageiros estão bloqueados nos diferentes aeroportos europeus, os
comboios estão parados, paralisados por importantes quedas de neve, o que não
acontecia há mais de vinte anos!”
— Adama? — chamou Dris.
Coberto de suor,
Adama suspendeu o martelo e virou-se para o mais novo. Ainda não era meio dia,
mas o seu corpo sofria do calor. Ele tinha andado mais de cinco quilómetros
para trabalhar na carreira com o estómago vazio. Há uma hora que ele reduzia
quilos de granito para fazer cimento. Passou a mão pela testa, tentando em vão
enxugar as gotas salgadas que escorriam pelos olhos e pelos lábios secos.
— Já vste neve? —
perguntou Driss que segurava um martelo maior que ele.
— Não, o que é?
— Por isso é que
perguntei, mas se não sabes, não sabes, né?
O miúdo recomeçou
a trabalhar. Adama fez uma careta. Tentou lembrar-se dessa palavra, cavou nas
suas memórias para encontrar um significado. Moussa chegou-se ao pé dele com a
sua enxada. Chamavam-no “o Gaulês” porque tentou a sorte na Europa, mas voltou
menos de dois anos mais tarde, com escolta. Evitava-se falar desse regresso
humiliante por pudor, mas não era suficiente para que outros sobrinhos e primos
não tentassem a sorte. Havia sempre quem achasse que iria conseguir mais que os
outros.
— Adama, então? —
perguntou Moussa — Mas tu não sabes o que é a neve? Estudaste o quê na escola?
— Eu trabalho, não
tenho tempo de ir à escola.
Irritado, Adama
afastou-se. Ele usou a sua infância na carreira e ia usar a sua juventude da
mesma maneira por apenas trezentos francos por dia. As suas mãos estavam
calejadas, as unhas partidas, os seus dedos tomavam automaticamente a forma do
martelo. Ele partia granito todo o dia, todos os dias. Que crime tinha ele
cometido para ser condenado dessa maneira? E todas essas crianças a volta dele,
que faziam o mesmo trabalho que ele, que tinham elas feito? Partiam pedras,
usavam as suas costas e articulações sem mesmo ter um tecto que não voaria com o
vento ou que não resistiria às primeiras chuvas. Eles eram velhos e ainda não
tinham quinze anos. Com isso, será que o Moussa achava mesmo que ele e os
outros iam à escola? O próprio Moussa não devia conhecer a existência da tal
neve antes de ter ido viver para França.
— Vou
explicar-vos o que é a neve. — disse Moussa.
Driss
aproximou-se novamente, arrastando o martelo.
— Lá na Europa,
há várias estações. Não é como aqui, hã? Aqui chove e faz calor. Lá, têm quatro
estações. — explicou Moussa mostrando quatro dedos. — Há a primavera, faz
fresco e podes adoecer por causa do pólen. No verão, faz muito calor, mas não tanto
quanto aqui. Depois, o outono, faz frio e chove. Tens de pôr casacos e tal. É
como quando vais para o escritório e tem o ar condicionado no máximo, e ficas
doente só de abrir a porta. E depois, tens o inverno. E aí, meu Deus! É um frio
de rachar! Quando tu pões as mãos no gelo, dói-te nos ossos, né? Pois, imagina
o corpo todo no gelo.
Adama não ouvia
as histórias de Moussa. Na rádio, faziam uma homenagem à John Lennon pelo
trigésimo aniversário da sua morte. Adama não se lembrava desse nome, mas
conhecia essa música: um dos vizinhos tinha construído uma guitarra de sucata
cujo som estava desafinado. Quando caia a noite, ele cantava o que ele chamava “clássicos”.
Clássicos de quê? Adama não fazia a mínima ideia, mas gostava na mesma,
principalmente quando o vizinho traduzia. Ele não conseguia imaginar uma vida
onde os pertences seriam partilhados, onde não haveria nem fome nem avareza.
Que tipo de mundo era esse? Onde se encontrava? Na Europa, como achavam os da carreira?
O Adama tinha apenas como pagar o sítio onde dormia e farinha de milho. Ele não
podia pagar um bilhete para esse tal de Eldorado.
— Adama! — chamou
outra vez o Driss. — Queres ir ver a neve?
— E queres ir ver
a neve onde?
— Lá na Europa!
Adama olhou para
o Moussa.
— Estás a dar-lhe
más ideias.
— Todo mundo tem
direito de sonhar, — explicou Moussa.
— Tu também
sonhaste e fizeste uma ida e volta que custou-te uma fortuna. Para quê? Foste
lá, ninguém te disse “bem-vindo” e voltaste bem acompanhado. Ou não?
As mândibulas do
Moussa contraíram.
— Driss, não
temps direito de sonhar com a neve, de imaginar um outro mundo. — continuou
Adama. — Esquece lá isso, não é para nós.
“E agora, Zangalewa dos Golden Sounds, de 1986,
que voltou a fazer sucesso graças à Shakira e os Freshlyground da África do
Sul. Bom dia com a Rádio Sol!”
O trabalho do
Adama era partir granito e ele partiria granito até o fim da vida dele.
— Eu não sonho. —
murmurou com esforço, mais para ele que para os outros. — Sonhar dói.